FLUP DESEMBARCA EM PERNAMBUCO CELEBRANDO NEGRITUDE E LITERATURA
- Flup Festa Literária
- 1 de out.
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Por Rafaela Lohana
Os Altos de Recife e as favelas do Rio de Janeiro compartilham experiências semelhantes: a excelência negra, o domínio de saberes profundos atravessados pelas vivências diaspóricas e, sobretudo, a mão nordestina que ergue ideias e constrói futuros.
Neste ano, a Festa Literária das Periferias, Flup — que desde 2012 se consolidou como um dos principais encontros literários do Rio — desembarcou pela primeira vez em Pernambuco para realizar sua festa no Alto Santa Terezinha, Compaz Eduardo Campos, entre os dias 10 e 14 de setembro. Com o tema “Saberes Conectados: negritude em todos os espaços”, o festival descentralizou debates urgentes, abrindo caminhos para sonhar, repensar e, quem sabe, reencantar o Brasil que vivemos.

O Alto
Desde 1939, construir o próprio chão em busca de oportunidade e dignidade era o ideal entre as minorias racializadas do Recife, quando a criação da Liga Social Contra os Mocambos proibiu a construção de habitações precárias nas áreas centrais da cidade.
Esse processo empurrou famílias para regiões periféricas num movimento semelhante ao vivido no Rio de Janeiro, onde a gentrificação e o pós-abolição resultaram no surgimento dos morros como o da Providência, considerada a primeira favela carioca, e na ocupação de áreas do Recôncavo da Guanabara à Baixada Fluminense.
“Construíram suas próprias cidades, fora da cidade oficial”, disse Victor Moura, jornalista e idealizador do projeto Redes do Beberibe, que atua na comunicação em defesa da bacia hidrográfica que banha a região. Para ele, a periferia é uma rede de solidariedade, produção de conhecimento e articulação diária entre comunidades, cada uma crescendo com suas particularidades.
É nesse contexto que, no coração do Alto Santa Terezinha, próximo ao bairro da Linha do Tiro, a Flup fez morada, acolhendo a língua portuguesa e outros saberes.

A família Trindade
Em gesto de potência, presença e futuro, a festa homenageou Solano Trindade, patrono da luta antirracista, teatrólogo, poeta e militante. Relembrá-lo foi reafirmar um compromisso com a memória.
Seu filho, Liberto Solano Trindade, e a companheira dele, Nilu Strang, responsáveis pela rádio web Casilêoca, participaram de várias atividades durante o festival, a primeira delas com crianças e adolescentes de escolas públicas, rememorando os passos de Solano em Pernambuco antes de sua ida para o Sudeste. No encontro, reforçaram a influência da cultura popular e negra.
Na biblioteca do Compaz, entre poemas declamados, falaram sobre o “movimento Solano”, a importância de Margarida Trindade e o apagamento da presença nordestina na construção da Baixada Fluminense, território onde Solano fundou, em 1950, o Teatro Popular Brasileiro (TPB).
“Cada poema de Solano é atual, porque o Brasil é o mesmo. Só que o negro de hoje é mais livre. É como uma casa sendo construída, tijolo por tijolo”, disse Liberto, provocando reflexões em quem o ouvia.

Os cinco dias
Foram encontros diversos: autoras, autores, artistas e intelectuais se reuniram para promover a palavra e trocar experiências sobre juventude negra, ancestralidade, acessibilidade e pertencimento.
No primeiro dia, Jessé Souza e Bianca Santana, mediados por Jéssica Santos, falaram sobre políticas públicas que façam sentido para a juventude: as possibilidades de pensar uma geração economicamente e politicamente ativa, e o bem-viver como proposta de futuro para todas as pessoas.

“O bem viver pressupõe um convívio harmônico entre todos os seres. Todas as pessoas, de qualquer cor de pele, gênero, sexualidade, mas também com a natureza, com os invisíveis, com a espiritualidade. É a constituição de uma vida possível para todo mundo, sem a produção de morte para alguns, para que todos possam viver”, afirmou Bianca.
No segundo dia, Esmeralda Ribeiro, Inaldete Pinheiro e Odailta Alves trouxeram a ancestralidade em vida. As três compartilharam as dificuldades de pavimentar o próprio caminho na literatura e denunciaram o quanto o mercado editorial pode ser “perverso”. Como disse Esmeralda: “fazemos a nossa própria rota”. Uma mesa de aquilombamento e reconhecimento de que permanecer em rede é também estratégia de sobrevivência.

No terceiro dia, Carla Akotirene e Cannibal construíram um diálogo potente sobre conhecimento como alimento cultural.
“Quando a arte alimenta a nossa cabeça, a gente usa toda a criatividade em prol da nossa comunidade negra”, destacou Akotirene, escritora, pesquisadora e assistente social no SUS.
Cannibal reforçou a importância do contato com a arte nas periferias, afirmando em voz alta: “a arte salva!”.

Ainda no mesmo dia, Mãe Beth de Oxum e Pai Ivo lembraram a energia do sagrado em Pernambuco, trazendo a oralidade e a dança como ferramentas de autoestima e resistência contra o racismo religioso. Já Itamar Vieira Jr. e Vitor da Trindade responderam à provocação “a arte incomoda a quem?”, ressaltando o poder da literatura em desafiar privilégios. Trindade ecoou sua fala com o ritmo ancestral “Congo de Oro”, herança bantu que ainda ressoa nas cantigas cotidianas e caboclas.

O quarto dia reafirmou o poder dos sonhos. Sônia Guimarães, primeira mulher negra doutora em Física no Brasil e primeira professora negra do ITA, refletiu sobre o peso e a solidão de ser “a primeira e a única” em muitos espaços.
A mesa com Robeyoncé Lima, primeira advogada travesti de Pernambuco e codeputada estadual, transmitiu a urgência de derrubar barreiras de machismo, racismo e transfobia.

“Precisa se rever o conceito do que é conhecimento, porque aqui também há uma produção de conhecimento que não é acadêmica. Mas também é produção de conhecimento. O formato de vivência em uma comunidade é outro, completamente diferente, que não é ABNT, não tem laudas, não tem acompanhamento bibliográfico — mas é vivência, é oportunidade, é outro jeito de produzir saber”, reforçou Robeyoncé.
No último dia, a festa se encerrou em forma de revoada sonora com Ellen Oléria e Lucas dos Prazeres, trazendo a força do coco e dos tambores para dentro da Flup. “Eventos como a Flup precisam existir para captar olhares. É necessário conhecer para preservar”, disse Lucas.

Legado e partilha
Os batidões do corpo e da palavra se encontraram em uma linha só.
A Flup PE foi um quilombo temporário, onde vozes, tambores, bibliotecas vivas, deixaram sementes.
Para nós, o que fica é a certeza de que a literatura e as artes continuam sendo instrumentos fundamentais de transformação social, capazes de mover cidades oficiais ou não. É claro! As expectativas se voltam para a próxima edição, de volta ao Rio de Janeiro, que acontecerá de 19 a 23 e de 27 a 30 de novembro, dando palco para a Escrevivência brasileira e a essência caribenha brilharem.