COMO O CARIBE REENCANTOU O MUNDO?
- Flup Festa Literária
- 30 de jun.
- 5 min de leitura

Por Isabella Rodrigues
Brasil e Caribe compartilham raízes históricas profundas: ambos foram moldados pela diáspora negra, marcados pela exploração colonial e atravessados por um legado que deu origem a ideias capazes de reencantar o mundo.
Do tráfico transatlântico de africanos escravizados às lutas por independência e afirmação cultural, esses territórios transformaram a herança da violência em força criativa. Essa potência se revela na literatura, na música e nos saberes populares que seguem reconfigurando o olhar eurocentrado sobre o que é centro e o que é periferia.
Por séculos, o Caribe foi tratado como palco de exploração colonial. Espanhóis, franceses, ingleses e neerlandeses disputaram essas ilhas, reduzindo-as a meros entrepostos lucrativos. Mas a história contada de cima quase sempre ignora o que, de fato, emergiu dessas águas.
Na contramão da narrativa escrita pelos colonizadores, a literatura caribenha — em crioulo e nas línguas impostas pelas metrópoles — se firmou como linguagem de reinvenção. Uma escrita que além de denunciar o passado colonial, transformou a ruína em voz, e a dor em gramática própria.
Esse reencantamento ganha novos sentidos em 2025, com a Temporada Brasil-França da Flup. Depois de ocupar o Festival Étonnants Voyageurs, em Saint-Malo, com uma delegação que levou à França um Brasil “raiz”, periférico e pulsante, a próxima travessia é rumo a Guadalupe.
Neste ano, a Flup também marca presença no Festival Monde en Vues, realizado no Memorial ACTe, um espaço que cultiva a memória viva da presença e da luta negra nas Américas.
Em novembro, é a vez da França desembarcar no Rio. Delegações dos dois festivais chegam à cidade para ampliar o diálogo entre o Brasil e o Caribe francófono, com colóquios, encontros e performances dedicadas aos legados de Césaire, Fanon e Glissant.
Porque o reencantamento caribenho não é sobre resgatar uma origem perdida. É sobre traçar novas rotas. Sobre corpos que dançam apesar das feridas; sobre línguas que nascem do atrito.
Identidade, linguagem e insubmissão
No século 20, três figuras nascidas na Martinica ajudaram a reinventar o lugar do Caribe no mundo: Aimé Césaire, Édouard Glissant e Frantz Fanon. Com suas obras, eles não só pensaram a libertação, mas a moldaram, palavra por palavra.
Césaire, poeta e político, cunhou o conceito de negritude como um “reconhecimento lúcido de ser negro”. Em Caderno de um retorno ao país natal (1939), propõe uma reconexão poética com a África ancestral como forma de ruptura contra o colonialismo e uma afirmação da identidade negra e caribenha — influência que reverbera até hoje na poesia, na teoria e nos movimentos pan-africanistas e decoloniais.
Glissant, seu discípulo, expandiu a crítica ao colonialismo ao pensar a crioulização como força criadora. Para ele, o encontro entre culturas não é fusão nem assimilação, mas atrito — e é desse choque que nascem novas formas, imprevisíveis e plurais. Com sua “poética da relação”, Glissant propõe uma filosofia rizomática, onde as identidades se conectam sem hierarquia, e onde a diferença é o que sustenta, e não ameaça, o comum.
Já Fanon, psiquiatra e revolucionário, investigou o trauma psicológico que o colonialismo impõe ao corpo e à mente dos colonizados. Em obras como Pele Negra, Máscaras Brancas (1952), ele desvendou a crise de identidade e a busca, muitas vezes vã, por assimilação cultural. Em Os Condenados da Terra (1961), Fanon não só denunciou o impacto psíquico devastador da opressão racial, como também afirmou que a violência anticolonial — embora trágica — pode ser um ato terapêutico e desalienante.
Para o psiquiatra, não se trata de glorificar o confronto, mas de reconhecer que, diante da desumanização sistemática, a resistência é um caminho necessário para a autonomia e a cura coletiva. Suas ideias, que propõem uma descolonização total (política, cultural e psicológica), mantêm relevância universal nos estudos sobre opressão e liberdade.
Juntos, Césaire, Glissant e Fanon transformaram o Caribe em laboratório filosófico, estético e político. Um lugar onde o mundo não é apenas interpretado — é recriado; reencantado. E essas reflexões continuam vivas, sendo discutidas por herdeiros e herdeiras de suas obras na Flup, em novembro.
A cultura caribenha em movimento
No tabuleiro geopolítico, o Caribe não apenas inspirou, como protagonizou revoluções de impacto global. A mais emblemática foi a Revolução Haitiana (1791–1804), único levante de pessoas escravizadas no Novo Mundo que resultou na independência de um Estado soberano.
Liderado por nomes como Toussaint Louverture e Jean-Jacques Dessalines, o movimento derrubou o domínio francês na colônia de Saint-Domingue e deu origem ao Haiti — primeiro país das Américas a abolir a escravidão e ser governado por ex-escravizados.
A insurreição começou em 22 de agosto de 1791 e mobilizou centenas de milhares de pessoas, deixando cerca de 200 mil mortos ao longo de mais de uma década de conflitos. Mais do que uma vitória militar, a revolução haitiana virou símbolo de liberdade radical e enfrentamento ao colonialismo, inspirando movimentos abolicionistas por todo o continente.
Na música, a revolução caribenha também deixou marcas enraizadas. O reggae, nascido na Jamaica, tornou-se símbolo de resistência global. Além de Bob Marley, artistas como Peter Tosh e Burning Spear amplificaram a mensagem de dignidade negra e justiça social.
A cultura dos sound systems, que começou a se consolidar nas ruas de Kingston no início dos anos 1950, foi fundamental para a disseminação do reggae e do dancehall, transformando festas de rua em verdadeiros palcos de inovação musical e engajamento social. Esses sistemas de som potentes, com seus DJs e seletores, criaram uma plataforma vibrante para a música e a voz do povo, dialogando com o panafricanismo e a busca por liberdade — temas universais que inspiram gerações.
No cinema, nomes como Raoul Peck e Euzhan Palcy recolocaram o Caribe no centro do debate sobre raça, identidade e narrativa. Seus filmes emergem da urgência de recontar o que o mundo tentou apagar.
O haitiano Raoul Peck mergulha no colonialismo e racismo estrutural. Obras como Eu Não Sou Seu Negro (2016), baseado em James Baldwin, e Lumumba (2000), sobre o líder congolês, expõem as persistências da opressão.
Já a martiniquense Euzhan Palcy quebrou barreiras. Foi a primeira diretora negra a ganhar um César por Rue Cases-Nègres (1983), um sensível retrato da vida pós-escravidão nas Antilhas. Em Hollywood, dirigiu A Dry White Season (1989), sobre o apartheid, tornando-se a primeira mulher negra a fazê-lo para um grande estúdio.
O Caribe nos ensinou a criar beleza entre os escombros. E nos lembra, com a força dos ventos que vêm do mar, que o mundo pode, sim, ser reencantado, se estivermos dispostos a escutar.
Por isso, na sua 15ª edição, a Flup volta os olhos para o Caribe – um arquipélago onde a negritude dança com a língua, a ginga se faz pensamento e os batidões do corpo e da palavra reencantam o mundo.
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