NA NOSSA ESTANTE: UM DEFEITO DE COR, DE ANA MARIA GONÇALVES

Por Zéza, Designer da Flup.

Como filho de Oxum que sou, a história de Kehinde me pegou logo nas primeiras páginas e eu nem imaginava o que estava por vir. "Um defeito de cor", de Ana Maria Gonçalves, é uma obra monumental que resgata a história do Brasil e da África no século XIX por meio da narrativa ficcional dessa filha da Orixá das águas doces, mulher negra africana escravizada, ainda criança, e trazida à força para o Brasil, por sobre águas salgadas, amargas...

O romance se destaca pelo oceânico mergulho na história da escravidão e nos desenha imagens vívidas que o racismo insiste em afogar. O horror e a violência daquele tempo holocáustico, sim, desaguam na narrativa, mas também as táticas de sobrevivência e resistência do povo preto banham cenas que perpetuam até hoje. Kehinde era uma mulher que lutava, mas que também aprendeu a amar, viver seus desejos, empreender e isso descortina a visão de uma vida apenas sofrida e passiva que muitas vezes predomina nos livros didáticos, novelas e afins.

A barbárie do tráfico transatlântico e da escravidão urbana e rural são mar desbravado em cada gota de linha, mas também a força dos nossos ancestrais sequestrados são retratados e evidenciam os impactos do colonialismo português na África e nas Américas. A autora reconstrói com riqueza de detalhes episódios históricos como a Revolta dos Malês, a abolição da escravidão e os movimentos de retorno de africanos libertos ao continente natal, especialmente à região de Daomé (atual Benim).

Através de Kehinde, conhecemos o cotidiano nos engenhos, os sistemas de castigos, resistências na preservação da língua e da cultura, como exemplo, o nascimento do Candomblé, além da complexa rede de relações entre africanos, crioulos e brancos. Kehinde se torna símbolo da luta por dignidade, pertencimento e liberdade. A narrativa é atravessada por uma visão crítica da história oficial e oferece uma reparação simbólica por meio da literatura, em cada gota de palavra deste atlântico rio de mais de novecentas páginas. Oreieieo!