FLUP LEVA UM OUTRO BRASIL AO CENTRO DA CENA LITERÁRIA INTERNACIONAL
- Flup Festa Literária
- 20 de jun.
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A cidade portuária de Saint-Malo, no norte da França, cercada por muralhas e mares revoltos, recebeu nos dias 7, 8 e 9 de junho uma delegação brasileira que carrega luta e ancestralidade: intelectuais, artistas e escritores que transformam ferida em linguagem e memória em gesto político.
Pela primeira vez, o Brasil foi o país homenageado na 35ª edição do Festival Étonnants Voyageurs, um dos mais prestigiados encontros literários da Europa — e não foi qualquer Brasil que aportou ali.
Sob curadoria de Julio Ludemir, diretor da Flup – Festa Literária das Periferias, o país chegou com rosto, voz e pensamento negro. A filósofa Djamila Ribeiro, os escritores Jeferson Tenório, Itamar Vieira Junior, Eliana Alves Cruz, Daniel Munduruku, Geovani Martins, o quadrinista Marcelo Quintanilha, o romancista Bernardo Carvalho, a cineasta Graciela Guarani e o pianista Amaro Freitas formaram a delegação que se recusou a representar estereótipos. Foram ao centro da cena para redesenhar o mapa das ideias.
Ainda no primeiro dia de evento, durante a mesa “Apaiser notre mémoire commune” (Apaziguar nossa memória coletiva), a escritora Eliana Alves Cruz sintetizou o espírito da delegação com uma fala sobre o papel da literatura na reconstrução do imaginário democrático brasileiro:
“Precisamos reaprender a conversar, a divergir e a debater, precisamos reaprender a democracia. E eu acho que esses livros — não apenas os meus, mas os de toda a delegação brasileira que está nesse evento, outras pessoas brilhantes — são livros que têm feito a sociedade brasileira despertar para algo que estava latente, e que as pessoas não conseguiam traduzir em palavras, mas que estamos conseguindo colocar em histórias”, declarou. “Esse é um bom momento no Brasil, por incrível que pareça. É um momento de profunda reflexão e eu acho que é um ponto de virada.”

“Ela representa essa delegação”
Logo no cartaz do festival, a ilustração de Marielle Franco impõe sua presença. Não como mártir, mas como farol. Para Djamila Ribeiro, vê-la estampada em cada peça gráfica foi mais que uma homenagem, foi uma convocação histórica. "Ver Marielle em todas as peças gráficas, em todos os cartazes, sendo vista… para nós, mulheres negras, isso tem um significado profundo. Lutamos historicamente por esse lugar de visibilidade", afirmou. Djamila também declarou estar feliz por integrar a delegação brasileira levada pela Flup, especialmente por ser sua primeira participação no festival.
Diante de mais de mil pessoas na mesa de abertura "Un air de liberté" (Um ar de liberdade), Djamila destacou a importância simbólica de Marielle, que nas suas palavras “foi interrompida enquanto lutava pela liberdade, pelo direito de ser uma mulher pública e por causas importantes para nós, mulheres negras no Brasil — uma mulher que veio da comunidade e foi silenciada nessa luta”.
A presença de Marielle Franco também atravessou mesas de debate e momentos de reflexão ao longo do festival, reforçando seu papel como referência para uma nova geração de escritores e intelectuais. Como salientou Djamila, “ela representa essa delegação, esse trabalho que estamos fazendo aqui”.
Um manguezal chamado Brasil

O festival ecoou vozes do Brasil ancestral e diverso. Em mesas como “Une Grande Mangrove Appelée Brésil” (Um grande manguezal chamado Brasil), a metáfora do mangue (bioma onde a vida brota da lama) ganhou contornos políticos e poéticos. “Há a vida que brota na efervescência do mangue, mas também, em contraposição, a imagem de Marielle, que nos remete imediatamente à morte”, disse Bernardo Carvalho. “Essa imagem traduz bem o Brasil — um país suicidário, como pudemos ver no filme Meu Sangue é Vermelho, de Graciela Guarani, onde uma minoria está sempre tentando sabotar os esforços de uma coletividade.”
Graciela ampliou a metáfora, ligando o mangue às raízes vivas que resistem. “Pensar o Brasil como um mangue é muito forte. É um país que desenraiza os manguezais, suas raízes — os povos indígenas, quilombolas, as populações tradicionais. O mangue, as raízes, estão lutando sozinhos.”

Essa tensão entre criação e destruição, entre o que é arrancado e o que insiste em nascer, atravessou também a fala de Jeferson Tenório. Vencedor do Jabuti por O avesso da pele, ele participou da mesa “Vozes de Luta” ao lado do norte-americano Mateo Askaripour, e Olivier Marboeuf, de Guadalupe, somando algumas das principais vozes decoloniais a antirracistas contemporâneas.
Tenório destacou que os encontros entre diferentes culturas e expressões artísticas revelam tanto as dissonâncias quanto as semelhanças das experiências negras ao redor do mundo. Para o escritor, “a literatura tem justamente esse papel de revelar essas identidades”, permitindo o diálogo e a construção de pontes “É também uma oportunidade de compreender a complexidade do racismo e de perceber que as experiências negras e diaspóricas, no fundo, são muito parecidas”.
Falando à imprensa, Tenório também refletiu sobre os retrocessos no Brasil: “Houve um aumento significativo no reconhecimento da literatura negra, assim como dos saberes negros dentro das universidades. Me parece que, hoje, há um avanço bastante significativo. Por outro lado, também existe uma reação conservadora e reacionária que ameaça transformar esses avanços em retrocessos”. E lembrou que seu livro foi alvo de censura: O Avesso da Pele chegou a ser retirado de escolas por tratar de temas como violência policial e racismo estrutural.
O Brasil indígena em cena
Se o manguezal é metáfora do Brasil como terra fértil de contradições, o pensamento indígena escancarou essas fissuras com coragem e lirismo. Ao lado de Graciela Guarani, o escritor Daniel Munduruku trouxe ao festival sua obra e uma crítica contundente ao lugar que ainda é reservado aos povos originários nas narrativas globais.
"O mundo ocidental é um mundo muito quadrado e o mundo indígena é um mundo circular, é o mundo do coletivo”, afirmou o escritor, diante de uma plateia lotada. Questionado pela IRF sobre a influência da sua participação na percepção européia, Munduruku destacou que a presença indígena nesses festivais ainda parece “uma cota necessária”, marcada por exotismo e romantização. “Continuamos sendo retratados como ‘bons selvagens’”, ironizou.

Ele também chamou atenção para a desigualdade nos esforços de escuta: “Os indígenas fazem um esforço intelectual para entender o Brasil e encontrar e propor soluções para seus problemas mais graves. Mas o Brasil não se esforça para compreender os indígenas”, afirmou.
Mesmo diante desse cenário, sustentou a esperança de que o país, ao reencontrar suas raízes, possa transformar sua diversidade em um caminho de futuro. “Se essas várias culturas conseguirem transformar essa diversidade toda numa pedagogia, no modo de olhar para o mundo a partir da história, da ancestralidade, o Brasil vai fazer aquilo que a natureza faz, que é andar um pouco para trás para impulsionar para frente, ou seja, olhar para o seu passado, olhar para a sua história, para a sua ancestralidade, e essa ancestralidade vai impulsionar o Brasil para a frente. Eu acredito nisso".
Graciela Guarani, cineasta Guarani-Kaiowá, também marcou presença com força e delicadeza. Ao exibir o filme Meu Sangue é Vermelho (2019), que denuncia o genocídio indígena através da arte e da música, ela emocionou o público francês e politizou a experiência.
Ao exibir suas obras e compartilhar suas vivências, Graciela acredita que também revela as tensões reais enfrentadas por esses povos. “É isso que a gente vive hoje no Brasil: com vários projetos de lei sendo aprovados que ameaçam não só a nossa vida, mas a do planeta como um todo”, alertou, referindo-se à PL da Devastação.
A diretora também refletiu sobre o peso de ocupar, muitas vezes, sozinha, um lugar de fala. “Quando eu falo desse dito pioneirismo, não é muito com orgulho — é com peso também”, afirmou. Para ela, ser uma mulher indígena no audiovisual significa lidar com camadas sobrepostas de preconceito, como racismo e também de machismo.
Mas Graciela contrapõe essa lógica com uma outra forma de olhar: "Nas nossas culturas, esse princípio de classificação, de rotulagem, não existe da mesma forma. A gente não cultua essas formas de nomenclatura sobre quem somos ou de onde pertencemos. Nosso pertencimento vai além do que é definido pelo olhar ocidental — inclusive quando se trata da discussão sobre gênero", conclui a diretora.

Entre mundos e afetos
Ao apresentar “Cartas para minha avó”, Djamila defendeu que “a política das emoções é também uma política da memória”. O processo foi difícil, permeado por momentos de choro, mas também por uma sensação de libertação. “Acabou se tornando a história de muitas mulheres”, disse a autora, que recebeu cartas de leitoras e até de crianças de escolas impactadas pela obra.
A ponte construída em Saint-Malo, foi mais que diplomática. Foi sensorial. Em cada fala, ecoou o desejo de reinventar a escuta, de interromper o exotismo com pensamento crítico, de apresentar um Brasil que “é muito mais do que samba e futebol e todos esses estereótipos”, como afirmou Jeferson Tenório, mas um país que se reinventa por meio da arte, da filosofia e da resistência.
Djamila reforçou esse diagnóstico. “Estamos em um país com estruturas fundadas no racismo, com quase quatro séculos de escravidão. Os desafios seguem imensos. Mas é preciso reconhecer os avanços.” Ela própria é fruto desse processo, como destacou ao afirmar que foi a primeira de sua família a ingressar na universidade, graças à ampliação do ensino superior público e à política de cotas raciais.
Esse percurso coletivo também foi lembrado por Jeferson Tenório, que compartilhou a experiência de seu novo romance, De Onde Eles Vêm, centrado na trajetória de Joaquim, um jovem negro que ingressa na universidade por meio do sistema de cotas.
Para o autor, esse movimento representa uma transformação silenciosa, mas profunda: “Essa entrada massiva de pessoas negras no ensino superior tem transformado a sociedade e a mentalidade coletiva”, afirmou, reconhecendo que, apesar da permanência do racismo, há mudanças em curso que abrem novos horizontes.
Já Djamila ressalta que o avanço não se dá apenas na presença em festivais internacionais, mas na construção de uma base sólida no Brasil. “Hoje há mais escritores negros publicando livros, compartilhando suas experiências, construindo pensamento”, disse, ao lembrar que esse movimento é resultado direto do acesso à educação superior e das lutas travadas por políticas públicas.
Em vez do Brasil folclórico das vitrines turísticas, Saint-Malo encontrou um Brasil que pensa, canta, escreve e resiste. Um país que reconhece suas raízes e se recusa a voltar para o silêncio. “É sinal de mudança, e é também um legado que queremos deixar para as próximas gerações”, finalizou Djamila.
*Com informações da Rádio França Internacional.
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